Traçado #23 | Como não odiar seu trabalho
Um reflexão sobre a nossa resposta à pergunta “o que você faz?”
Bom dia!
A pausa, dessa vez, foi bem mais longa que o imaginado. Mas nunca é tarde para voltar.
Para quem não sabe, ingressei no mestrado em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Estou muito animado. Mas a minha disponibilidade de horas para voltar a este espaço ficará menor ainda; veremos com que frequência consigo. Espero, nessa jornada, compartilhar com vocês um pouco do gigantesco universo de conhecimento que está se abrindo para mim.
Nesses meses, também fiz uma migração de plataforma — do Mailchimp para o Substack. Não vou chateá-los com motivos e detalhes técnicos — quem quiser saber, me escreve. Só espero que tudo funcione bem.
Hoje falo de dois livros recentes que nos ajudam a pensar nossa relação com o trabalho, um tema de permanente reflexão para mim.
Como sempre, tem também um pouco de música, comida e leituras.
Espero que gostem!
Boa leitura, e até a próxima.
— Juliano
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Como não odiar seu trabalho
Um empresário está sentado na praia de uma pequena vila de pescadores quando vê um pescador se aproximando da costa com o resultado de sua pesca diária. Impressionado com a qualidade, o empresário pergunta ao pescador quanto tempo levou para obter aqueles peixes. “Ah, só um pouquinho”, responde o pescador. “Por que você não fica mais tempo para pegar mais peixes?”, pergunta o empresário. “Porque isso é tudo de que preciso.” “Mas então o que você faz com seu tempo?” “Eu durmo até tarde, pesco alguns peixes, brinco com meus filhos, tiro uma soneca com minha esposa e depois encontro meus amigos na cidade para beber vinho e tocar violão”, responde o pescador. O empresário fica chocado. Ele explica que tem um MBA e que, se o pescador seguir seu conselho, poderia ajudá-lo a expandir seu negócio. “Você poderia comprar um barco maior”, diz o empresário, “e então usar os lucros para abrir sua própria fábrica de peixes enlatados.” “E depois?” pergunta o pescador. “Depois você poderia se mudar para a cidade para abrir um centro de distribuição.” “E depois?” “Então você poderia fazer a expansão internacional de seu negócio e, eventualmente, abrir o capital da sua empresa”, diz o empresário. “Quando chegar a hora certa, você pode vender suas ações e ficar muito rico!” “E depois o que?” “Bem, então você pode se aposentar, mudar-se para uma pequena vila de pescadores, dormir até tarde, pescar alguns peixes, brincar com seus filhos, tirar sonecas com sua esposa e encontrar seus amigos na cidade para beber vinho e tocar violão.” O pescador sorri para o empresário e continua caminhando pela praia.
Essa história, adaptação de um conto do alemão Heirich Böll (Nobel de Literatura de 1972), abre “The Good Enough Job”, livro de Simone Stolzoff (ainda sem tradução). Para falar dele, é ilustrativo citar os mitos que o autor descreve no começo de cada capítulo:
o mito de que somos o que fazemos
o mito de que seu trabalho pode ser seu deus
o mito do emprego dos sonhos
o mito de que seu trabalho é o seu valor
o mito de que um local de trabalho pode ser uma família
o mito de que trabalhar mais horas sempre leva a um trabalho melhor
o mito dos benefícios gostosinhos do escritório
o mito de que status é igual a sucesso
o mito das fronteiras pessoais.
Na essência, o livro nos ensina que a pergunta “o que você faz” — e sua continuação sempre implícita “para ganhar dinheiro” — não precisa ser uma definição de quem nós somos. “Uma existência centrada no trabalho deixa espaço para pouco mais. Nenhum de nós é apenas uma coisa. Somos trabalhadores, mas também somos irmãos e cidadãos, praticantes de hobbys e vizinhos.” Simone defende a importância de “diversificar nossa identidade”, “porque isso nos permite ser pessoas mais completas, nos permite contribuir para o mundo de maneiras diferentes e desenvolver um senso de valor próprio que vai além do valor econômico que geramos”.
Isso envolve também se libertar da ideia do “emprego dos sonhos”. Sim, você leu uma entrevista ou um post de alguém que diz trabalhar de maneira apaixonada com aquilo que sempre sonhou. Mas a realidade mostra que isso é para poucos, e que perseguir esse sonho — “faça o que você ama” — pode levar a muita frustração. “Ame o que você faz” é um caminho mais seguro para a felicidade.
“Trabalho sempre será trabalho. Algumas pessoas trabalham fazendo o que amam, outras trabalham para fazer o que amam quando não estão trabalhando, e nenhum dos dois é mais nobre”, resume Simone. Sem falar que a tal “paixão pelo trabalho” muitas vezes é desculpa para aguentar salários baixos e ambientes de trabalho tóxicos.
A frustração do “emprego dos sonhos”, aliada a cargas de trabalho excessiva (alô, burnout), tem levado a uma rejeição completa do trabalho. Mas essa está longe de ser a solução, como comenta Cal Newport. Seu novo livro, “Slow Productivity”, “coloca em xeque a convenção contemporânea de produtividade, segundo a qual o funcionário mais eficiente está sempre ocupado, trabalhando em ritmo alucinante”, diz essa resenha do Neofeed.
Para alcançar a paradoxal “produtividade lenta”, Newport descreve três princípios para ser produtivo sem se esgotar. No resumo do Neofeed:
“Afrouxar a agenda compromissos, priorizando as tarefas verdadeiramente urgentes;
Seguir um ritmo de trabalho natural, sem deixar que pressões externas comandem o relógio;
Focar na qualidade do trabalho; não na quantidade.”
E o último é a “cola”. Porque se você está fazendo apenas os dois primeiros, “você está apenas construindo essa relação negativa contra o trabalho”. É a turma do “quiet quitting”, do “vamos simplesmente fazer nada”. Mas, por óbvio, “isso não dura”, defende Newport.
E como ser obsessivo com a qualidade pode ser o caminho? “Bem, não tem como você estar ocupado e frenético e pulando de um lado pro outro com 100 projetos se você é obcecado com fazer algo realmente bem. É incompatível.”
Pois é. Fazer menos, mas fazer com uma obsessão para fazer bem, com qualidade. E isso fará bem não apenas para a qualidade de vida de quem trabalha, mas também para o resultado dos negócios.
Cozinhando com o robô
“Aqui estão algumas sugestões de acompanhamentos que complementariam o sabor cremoso e picante do iogurte grego e a riqueza saborosa das coxinhas de frango:
Orzo de alho e limão: Essa massa é leve e saborosa, com um toque de alho. O limão vai realçar a riqueza do iogurte e do frango.
Cuscuz com ervas: O cuscuz macio com uma mistura de ervas frescas como salsa, hortelã e um toque de raspas de limão pode acrescentar frescor e uma leve nota cítrica à refeição.
Tabule de quinoa: Uma opção nutritiva e vibrante, o tabule de quinoa é embalado com tomates, pepinos, salsa fresca e um molho de azeite de oliva e limão, o que o torna um acompanhamento refrescante.”
Essa é um trecho de uma conversa recente com o “Sous Chef”, um dos GPTs customizados que estão incluídos no ChatGPT Plus (US$ 20/mês) — sim, o tom é meio efusivo, mas relevo isso facilmente diante da qualidade e utilidade das respostas. É uma mão na roda! Alguns outros exemplos de papos recentes:
Mandei a foto de uma receita num livro e perguntei como poderia substituir um ingrediente;
Mandei os ingredientes de uma granola e pedi uma receita para fazer em casa, substituindo alguns itens;
Mandei os itens que tinha para uma salada e pedi uma sugestão de preparo;
Fui preparar um frango, pedi dicas de carboidrato para acompanhar.
Ele dá receitas completas, ajusta quantidades, sugere mudanças ou cardápios completos. Tenho usado no planejamento, mas também ali no calor do momento, com o preparo já rolando.
Essa tecnologia vai mudar profundamente nossa relação com receitas na internet, e os sites especializados que não estão pensando nisso estão muito atrasados. É uma ameaça, mas também uma baita oportunidade. Martha Stewart, ícone de programas e revistas de lifestyle nos EUA, já dizia em setembro do ano passado que iria criar a MarthAI, um robô treinado com todo o vastíssimo conteúdo que ela produziu ao longo de décadas — ela está com 82 anos. Já pensou?
Dos outros GPTs, também tenho usado o “Laundry Buddy” e o “Adaptive Running Coach”, que usa seus dados do Strava para dar orientações de treino.
Música para focar (e relaxar)
Duas descobertas recentes de música instrumental para ouvir enquanto leio ou escrevo, ou apenas para desconectar um pouco.
Max Richter: compositor clássico contemporâneo, que “recompôs” As Quatro Estações, de Vivaldi. É lindo. A vasta obra de Richter (que inclui um disco de 8 horas feito para ser ouvido durante uma noite inteira de sono!) tem milhões de ouvintes no streaming. Vale a pena explorar.
Chad Lawson: esse pianista americano lançou em 2023 o álbum “Breathe”, e no Spotify você encontra uma versão com em que o próprio Lawson intervém com dicas simples de respiração. Não é uma novidade para ele: desde 2017, o pianista apresenta o podcast “Calm it down”, em que procura ajudar os ouvintes a fazer uma pausa e… se acalmar.
Outra forma de encontrar música instrumental é procurando por “Instrumental Mix” no Spotify. Você verá uma playlist personalizada só com músicas instrumentais ajustadas ao seu gosto. Aqui está a minha, me conta da sua.
O que estou lendo
Já se vão cinco meses desde a última edição, então compartilho aqui algumas leituras desse período.
Byung-Chul Han: o filósofo coreano (que fez sua carreira acadêmica na Alemanha) se tornou um dos principais pensadores da contemporaneidade, presença constante nas referências bibliográficas do meu mestrado. Seus ensaios estão em livrinhos curtos, publicados no Brasil pela editora Vozes. Você pode começar com “Sociedade do Cansaço”, o mais vendido, que inspirou até série no GNT e um documentário homônimo com entrevistas do próprio autor.
Elena Ferrante, a tetralogia napolitana: leitura linda das férias de verão. Literatura de qualidade que você não consegue largar — “Harry Potter de adulto”, na descrição de uma leitora. Li os dois primeiros e estou fugindo do terceiro porque sei que não vou conseguir parar, enquanto a pilha de leituras do mestrado só aumenta.
Isto é cinema (e propaganda, e PR)
Saiu, finalmente, o comercial do perfume Bleu de Chanel, dirigido por Martin Scorcese e estrelado por Timothée Chalamet. Finalmente porque a dupla vem falando do assunto há mais de um ano, quando o comercial foi filmado nas ruas de Nova York. Vídeos em rede social, entrevistas, fotos de encontros dos dois, até uma suposta data de lançamento que não se confirmou. Ou seja: mantendo o assunto em alta e atiçando a curiosidade do público dessas duas estrelas do cinema — um decano, outro super contemporâneo.
Se você ficou com vontade de comprar perfume ao final do filme, funcionou.
É isso por hoje. Obrigado pela leitura!


